se ela te disser (ou de quando os amigos nos tentam explicar quem somos)
texto Pedro Nuno Santos (2002)
desenho com legenda José Jorge Sá
se ela te disser que o céu tem tons cor de laranja porque as cidades já não se assustam como dantes não deves ficar surpreendido. deves perguntar: e não haverá uma razão mais próxima?
aí provavelmente surgirá uma resposta ainda mais inesperada do que a primeira
afirmação. aquela que te fez questionar se as palavras escolhidas o foram ao
acaso ou resultavam de profunda e madura reflexão.
se hesitaste então na resposta não a conheces. ela nunca diz nada por dizer. e o seu segredo está em deixar sempre o resto do mundo a questionar-se quando confrontado com os seus enigmas.
[a estupefacção é a reacção dos abandonados pelo génio quando se deparam com os
milionários das ideias]
dir-se-ia que há associações de palavras e frases e explosões de substantivos e
verbos que são suas em exclusivo. como se mais ninguém no mundo tivesse sequer
estado perto de as imaginar. num mundo em que a originalidade é um bem escasso
ela parece ter o monopólio da capacidade de surpreender.
devem existir memórias das coisas que disse escreveu desenhou. devem existir testemunhas desses momentos em que se partilhou. mas não existirão nunca registos escritos ou gravados desses depoimentos porque eles mais não são do que interjeições de espanto.
[os que nos provocam ohs de assombro são os que ficam gravados na nossa memória
tanto quanto no nosso futuro]
"Andreia, Não perguntes por que é que te vejo assim. Não sei explicar." JJS |
não sei de onde ela veio. sei coisas que ela me contou, mas não consigo ainda
agora distinguir o que era realidade do que era liberdade poética. mas também
se nasceu ou não num dia de chuva é pouco importante. importa sim que seja isso
que ela insiste em dizer.
não sei se cresce. não sei se muda. ou antes não sei se cresce e se muda como
nós e sujeita às mesmas regras. quase parece que tem o seu ritmo próprio e que
esse é que é o ritmo que todos deveriam seguir.
[quem está certo não precisa da autorização do mundo para o estar]
há quem tente enclausurar a arte em galerias ou estilos ou pior ainda em
definições. e depois há quem a prefira viver. ela prefere praticá-la e espantar
os que pensam que a beleza está sempre numa frase simples.
e vive provavelmente convencida
de que não é admirável. esse é o único erro que comete mas que se lhe perdoa
porque vem no meio de palavras que nos assaltam.
[se os que se julgam pequenos são os que nos fazem crescer isso faz deles na
verdade gigantes]
é pelos trilhos aparentemente labirínticos das coisas que diz que ela nos
consegue chegar ao coração. anuncia a palavra certa. faz a pergunta que não foi
feita. diz a graça que mais ninguém entende. mostra a imagem que condensa um
mundo. faz-se parte de nós.
ela é parte de nós. dos que de uma forma ou de outra a conhecem. se ela te
disser que o céu tem tons cor de laranja porque as cidades já não se assustam
como dantes faz-lhe uma pergunta que a deixe voar.