INTELIGÊNCIA NATURAL VS ARTIFICIAL


Há algum tempo alguém me perguntava por que é que eu prefiro caminhar diariamente na natureza em vez de correr... 

Respondi espontaneamente: se tiver de estar sempre a olhar para onde vou pousar os pés não terei grande tempo para percepcionar o que me rodeia.


Quando penso em inteligência penso em movimento. Penso no que permanece mas também, e talvez sobretudo, na impermanência. Não estarão ambos, o que permanece e a impermanência, infundidos na essência do humano?



O ser humano foi historicamente sendo definido pela sua inteligência, pela capacidade de perceber o real e pela autoconsciência. 

A Inteligência Natural é assim uma capacidade biológica do ser humano para resolver os problemas e adaptar-se ao meio ambiente, de forma cognitiva, comportamental e flexível. 

a Inteligência Artificial é uma criação do ser humano que consiste no desenvolvimento de máquinas que poderão imitar e atuar como seres humanos.

 

Muito sinteticamente, este poderá ser um avanço de descrição para o posicionamento do tema. Mas o assunto abarca tantas outras cores que não se diz nada a menos que se escolha uma ínfima parte para alumiar.


Comecemos pelo princípio, que é como quem diz: comecemos pela vulnerabilidade (ou será a força?)


Sabemos que a Inteligência Natural, ou biológica, precisa de operar com imagens, nomeadamente imagens com as quais seja capaz de se emocionar, de sentir. O mecanismo da Inteligência Natural não se cinge apenas à memória, atenção e selecção. Ele é mais complexo do que isso porque envolve uma dimensão emocional e essa dimensão emocional efectivamente interfere sobre a forma como tratamos/organizamos a informação.

A ideia filosófica de "inteligência sentida" está directamente relacionada com a "verdade da realidade" e isso tem a ver com o que nós, seres humanos, somos capazes de percepcionar através dos nossos sentidos, por outras palavras, com o real construído. Ora, nada disso poderá acontecer sem acção (interna e externa). O movimento e a acção estão intrinsecamente relacionados com o desenvolvimento da inteligência no nosso organismo.

O sistema nervoso é a parte constituinte do organismo que se encarrega da transmissão de sinais e coordena a actividade do todo, do conjunto de todas as funções do corpo. Os elementos tácitos/procedimentais que fazem bulir esse conjunto não são ainda totalmente "compreendidos" pelos chamados algoritmos da Inteligência Artificial, nem sabemos se algum dia poderão vir a ser. Na verdade, o que conhecemos hoje sobre o funcionamento do cérebro humano, graças ao empenho da investigação científica, é ainda uma pequena gota num oceano cheio de misteriosos enigmas morfológicos. E constatar isto é interessantíssimo porque nos faz pensar como é que se poderá processar a passagem de uma resposta/decisão/reação a outra na ausência de um corpo. 

O algoritmo, matematicamente proclamado como "uma sequência finita de ações executáveis que visam obter uma solução para um determinado tipo de problema", não se desenvolve no ambiente de um corpo vivo e, portanto, a mimetização do funcionamento de uma sinapse entre neurónios está longe de ser perfeita, por mais impressionante que nos possa parecer esse bicho da multiplicação, contraditoriamente, ou não, pré-determinado como limitado.


As tecnologias de Inteligência Artificial aplicadas na construção e melhoramento de ferramentas de produtividade 

prometem automatizar variadíssimos procedimentos, impactando directamente o nosso quotidiano pessoal, laboral, social, económico, cultural, etc. Aliás, elas não prometem impactar, elas já estão a impactar. O modelo de linguagem de IA por exemplo utilizado no Chat do Bing, ChatGPT e outras ferramentas afins, que agora estão na boca e nas mãos do mundo, treinado em um quase inconcebivelmente gigante conjunto de dados para abreviar o esforço dos utilizadores por meio de uma sofisticadíssima varredura, seleção e organização da informação, materializando-a numa fórmula/resposta quase sempre verosímil e com uma linguagem o mais possível próxima da natural, apresenta evidentemente inúmeras falhas, de resto já extensivamente apontadas.


No âmbito da Comunicação e da Criatividade 

essas falhas ou omissões não exigiram uma reflexão pública ou profissional excessivamente demorada. Desde logo se percebeu que a máquina não é capaz nem da originalidade nem da adequação a um público-alvo e contexto dotados de especificidades próprias. De igual modo, toda a dimensão relacionada com as variáveis de emotividade humana ficam de fora do algoritmo. A comunicação humana está repleta de nuances, marcas identitárias, cargas éticas e morais, traços de cultura e vozes/tons/registos, entre outros, que só podem ser percepcionados, digeridos e respondidos eficiente e eficazmente por um corpo dotado de sensibilidade. Só a capacidade de aprendizagem não basta para destrinçar o valor e o peso de tudo isto. (Dados por si só não são cultura!)


Concluindo,

a adaptabilidade do ser humano é enorme, mas o nosso corpo está biologicamente programado para evoluir/viver numa rede estrutural complexa segundo ciclos orgânicos que acontecem em tempo orgânico e que não podem ser alterados de lugar na sua sequência natural, ou substituídos. Desengane-se, por isso, quem acredita que estamos preparados para enfrentar, sem consequências sérias, o aceleramento tecnológico exponencial que está já em marcha. De facto chega a ser esmagador só pensar na velocidade evolutiva desta tecnologia quando comparada com  o tempo da evolução biológica. Se a segunda levou quatro mil milhões de anos, para a primeira foram apenas necessários, se nos reportarmos ao início da internet da informação, quarenta anos. Em quarenta anos já se atingiu a terceira era, a web3. Já não se trata apenas de conseguir alojar conteúdo ou colaborar/interagir, trata-se de criar valor e transacioná-lo, expondo perigosamente a privacidade, a liberdade individual e a democracia. Não podemos por isso demitir-nos de pensar no custo que isso poderá ter na ausência de uma consciência plena partilhada do alcance dessa exposição; sem uma regulação clara da aplicação da tecnologia por parte dos governos; sem um comprometimento ético efectivo e mensurável por parte dos desenvolvedores que têm a principal tecnologia na mão, aquela que é ainda desconhecida para a generalidade dos futuros potenciais utilizadores (nem todos eles bem intencionados); sem protocolos de segurança transparentes e globais; sem novos contratos sociais assumidos no contexto de uma ajustada adaptação às exigências desta nova realidade; sem cooperação de escala e à altura do desafio. Alguns dos maiores pensadores do mundo estão a alertar de forma sistemática para os perigos desta ferramenta chamada Inteligência Artificial, que é capaz de tomar decisões por si própria e de criar conteúdo novo. Sim, ferramenta! A IA é uma ferramenta, não pode e não deve ser entendida como um modelo de negócio ou dominação para se alcançar o sucesso num piscar de olhos. E se não se fizer uma utilização correcta/adequada da ferramenta, o mais provável será ferirmo-nos com ela.


Parece-me determinante que se construa um diálogo global, não apenas circunscrito a um pequeno conjunto da massa crítica internacional. É imperativo estabelecer que existem diretrizes éticas que não podem ser ultrapassadas nem pelas pessoas que trabalham com IA, nem por aqueles que a ela também terão acesso mais ou menos privilegiado. Precisamos de uma conversa mais inclusiva porque ela afetará a vida de bilhões de pessoas, directa ou indirectamente de toda a humanidade. 


O uso feliz desta ferramenta que nos entrou pelas vidas dentro só poderá depender da nossa intenção, da nossa escolha individual ponderada. É absurdamente negligente seguirmos impávidos e serenos nesta auto-estrada de grande velocidade, continuando a subjugar-nos às opções manipulatórias do sistema algorítmico pré-programado que opera já em todo o espaço cibernético através da vigilância escrutinadora de todos os nossos movimentos online. Isso não é tão facilitador nem tão empolgante como poderá parecer à primeira vista. Isso pode tornar-se altamente ultrajante e redutor.

Ocorre-me aqui, a poucas linhas de terminar este texto, que uma das mais insondáveis  e fascinantes peculiaridades da inteligência natural será essa capacidade de em momentos decisivos sermos capazes de converter o time-lapse das imagens todas da nossa vida num slowmotion dos momentos realmente significativos para a nossa existência enquanto pessoas, com base no significado único e intransmissível que só o tempo biológico foi capaz de edificar dentro de nós. Por mais dinamismo e sofisticação que se imprima a uma máquina, é ainda inconcebível pensar que ela será um dia capaz de atingir essa organicidade e que nós teremos esquecido a nossa capacidade de pensar sem cábulas.



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