Tângeras



O que está feito não se desfaz.

Os meus pés continuarão, 

para além de mim, 

para além do que muda, 

a aprofundar-se nessa terra sob a erva, 

crescendo, propagando-se, 

dançando muito lentamente com toda a vida 

que se manifesta sete palmos abaixo, 

e mais abaixo ainda, de raíz em raíz, 

aproveitando a sabedoria da lua das colheitas, 

a mais importante entre todas as luas.

 

E os meus braços sentir-se-ão cada vez mais firmes,

cada vez mais fortes, abraçando a escada 

para que descalço avances seguro em direcção à copa 

recolhendo com as tuas mãos os perfumes cítricos, 

e o nosso sumo de amanhã. 

 

E por vários dias eu adiarei o corte,

a coreografia da faca sobre as sementes.

E por vários dias eu prolongarei a toma,

sorverei sem pressa, 

porque no meu copo, tão longe de casa, 

estará vertida a recordação do teu espírito

tão doce e selvagem, polido e secreto, 

viril e, no entanto, hesitante do seu valor.

Tão cheio de graça, coincidência e ironia.

Tão digno pelo avesso. Tão cuidador.

Tão por ser visto ainda e apreciado na medida certa

da sua excepcionalidade, da sua potência cetácea.

 

Sim, o que está feito não se desfaz. 

Sempre que o vento sentir a abertura da escada 

há-de convocar a minha atenção 

e eu não faltarei ao chamado. 

Estarei lá contigo. Em cada degrau.

Entrelaçando os ciclos da vida, o nosso riso, o que se (a)guarda.

Nunca mais estarás sozinho.

 

A. Rafael da Silva 

Outubro 2025


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