O CAFÉ ANGOLA NOS ANOS 80 DO SÉCULO XX
texto + imagem A. Rafael da Silva
Rui era como um cometa. Passava
rápido, afogueado, errando a órbita como para se desviar do choque provável e
evitar maiores ocorrências. Rui era uma explosão de estilhaços prestes a
acontecer mas ainda apertada em novelo entre a mão direita por um nagalho que
daí partia para circundar o pescoço esgrouviado de um podengo, pobre coitado e
amarelo como a loucura da escritora inglesa.
Rui sorria o tempo todo
mudamente, fixamente. Ou talvez fosse só a sua cara que sorrisse e não ele.
Como se a sua fisionomia exterior fosse tão desajustada do interior como ele
era do mundo. O vagar do seu olhar contrariava a rapidez das suas aparições e
isso era o suficiente para desprender a minha atenção de tudo e qualquer coisa
que não fosse ele. Seria bom fotografá-lo, pensava, compreender a sua
profundidade, como eu a imaginava.
Um dia adoeceu-lhe o pai e
escutei-lhe a voz, pela primeira vez. Depois de tanto tempo de silêncio fez-se
ali voz pela primeira vez, à porta do café Angola, virado para dentro. Um corpo
com voz afinal.
- Se ele me deixar a minha vida
acaba.
Deixou-me aterrada. Não é coisa
que se diga assim à frente de uma criança curiosa. É coisa para nos lembrarmos
pela vida fora.
Do café Angola trago comigo ainda
hoje muitas conversas, muitas lembranças, mas nada mais forte do que essa frase
dita por aquela boca que nunca parava de sorrir porque anatomicamente estava impedida,
até mesmo quando o resto do rosto lhe exigia o contrário. Lembro-me de ouvir
muita coisa por ali. À mesa do Artur que perdeu a mão na guerra, por exemplo,
todas as suas histórias intermináveis sobre ciência humana e combate. Lembro-me
também do Vinte e Nove dos jornais e dos seus olhos azuis, intocados,
solitários, tão amontoados de pequenas angústias. Lembro-me muito bem do maior
facho que por lá parava, do ourives que já em novo tinha o cabelo velho e do
capatão que vendia o peixe na esquina. Ah, lembro-me, claro, do barbeiro bojudo
que insistia em tratar-me sempre por uma alcunha fazendo acompanhar o gracejo
do seu melhor ar de gozão. Lembro-me que o homem que matava os porcos de toda a
freguesia era totalmente careca e às vezes conversava à porta com a bufa, que
vendia hortícolas pousados sobre uma carrela entre a casa do Dr. e a banca de
fruta da Evangelina, mesmo em frente ao café. Naquele tempo eu era, como dizia
o tio, uma pomba branca que esvoaçava pelo coração de todos estes dignos e ilustres
desconhecidos e se espantava com eles. Mas nenhum deles causaria maior
detonação no meu peito do que Rui.
Depois de me ter paralisado com
semelhante fatalismo profético imergiu de novo no seu silêncio habitual e
abandonou o lugar. Não se lhe conheciam mais parentes para além do pai, penso
eu, apenas um ou outro amigo que lhe perdoavam a falta de predisposição para a
fala e iam, como ele, invariavelmente parar ao café Angola, partilhando a mesa
e o desapego. Não me recordo de o ver participar de qualquer conversa, embora
todos consentissem a sua presença com uma certa parcimónia. Aparentemente
ninguém ficava indiferente a uma cara que não podia parar de sorrir o tempo
todo.
O pai morreu-lhe uns dias depois.
Estávamos no outono, num desses dias
estação de queda rápida, agasalhos cinzentos sobrepostos e extremidades frias.
As folhas humedecidas pela madrugada esvoaçavam silenciosas braços abaixo. Do
ramo direito mais forte partia um nagalho para circundar o pescoço esgrouviado
de Rui, com os seus cachos compridos e mal aparados, amarelos como a loucura,
só ocasionalmente reanimados quando uma sobra de vento lhe soprava uma mecha. A
sua mão direita tinha perdido o medo e abrira-se deixando cair os estilhaços, o
destino do café e a sorte do pequeno errante que nunca o abandonou, e mesmo
naquele dia ali se deixou ficar sentado, imóvel, ao lado daquelas pernas que
nunca lhe tendo negado calor agora se tinham elevado do chão.