FERIDA D'ÁGUA I
não raro demasiado pesada
e o tempo é de avançado cansaço
pouca paz, muito transtorno e arritmia
há que apressar os aforismos
garantir o epitáfio justo para uma vida justificada
todos estes anos encenei no meu pensamento
milhares de versões para o nosso reencontro
ensaiei discursos, recortei-nos vezes sem conta,
na minha cabeça,
como um ourives de alicate em punho
dobrei as falas menos perfeitas,
acertei a precisão dos gestos, fiz-nos andar
mais depressa ou mais lentamente
em conluio evidente com o movimento
dos grandes sentimentos,
das grandes emoções
inventei-nos tantos enredos, cenários e desfechos
que se tornou demasiado perigoso,
até para alguém tão experiente como eu,
continuar a voltar do sonho de mãos vazias
por que tinha eu de inventar-te assim?
onde fui desencantar essa ideia de que
estaríamos os dois guardados para
as melhores coisas que há na vida?
acaso estaria já escrito, num lugar remoto da terra,
que teríamos de viver um no outro
como um tesouro perdido na imensidão do oceano
profundo, azul, dilacerante
sempre à espera de ser devolvido à luz
e absolutamente resoluto no seu destino de silêncio?